quinta-feira, 28 de agosto de 2014

LITERATURA DAS “BORDAS” DO SÃO FRANCISCO - Estudo de obras marginais contemporâneas que representam as cidades mineiras de Pirapora, São Romão, São Francisco e Januária



Profa. Dra. Maria Generosa Ferreira Souto[1]
(Unimontes/Montes Claros/MG)

Prof. Carlos Alberto Ferreira Brandão[2]
(Unimontes/Montes Claros/MG)

Prof. Francisco Rodrigues Júnior[3]
(Unimontes/Montes Claros/MG)

RESUMO: Este texto tem como objetivo apresentar o resultado da pesquisa Literatura das Bordas do São Francisco – Estudo das obras marginais que representam Pirapora, São Romão, São Francisco e Januária, um estudo da literatura produzida no Norte de Minas Gerais, desenvolvida na Universidade Estadual de Montes Claros entre 2008 e 2010. O trabalho tem a intenção de apresentar  autores mineiros, cuja produção,  em representação e poesia,  encontra-se fora do cânone, porém trazem contribuições importantes para a cultura local  e global. Pretende valorizar a obra de escritores norte-mineiros,  muito oportuna num momento em que se discute o cânone, e,  ousa mostrar o que chamam, teimosamente,  de a literatura da exclusão, a literatura periférica, a literatura confessional, a literatura enjaulada, também dita marginal  ou das bordas.


PALAVRAS-CHAVES: Literatura brasileira contemporânea – Cânone – Escritores mineiros.



ABSTRACT: This text has as objective to present the result of the research Literature of the Edges of the San Francisco - Study of the workmanships delinquents who represent Pirapora, Is Romão, San Francisco and Januária, a study of the literature produced in the North of Minas Gerais, developed in the State Clear Mount University between 2008 and 2010. The work, therefore, has the intention to present mining authors, whose production, in representation and poetry, meets outside of the rule, however brings important contributions for the local and global culture. It intends to value the workmanship of writers north-miners, very opportune at a moment where if the rule argues, and dares to show what they call, stubbornly, of the literature of the exclusion, peripheral literature, confessional literature, enjaulada literature, also said delinquent or of the edges. 

 KEYWORDS: Brazilian literature contemporary - Canon - Mineiros Writers.


Introdução

O presente trabalho postula apresentar  resultados da Pesquisa “Literatura das Bordas do São Francisco – Estudo das obras marginais que representam Pirapora, São Romão, São Francisco e Januária, um estudo da literatura produzida no Norte de Minas Gerais”. Os porta-vozes dessa nova vertente da literatura periférica, porém,  é parte integrante da Literatura Brasileira Contemporânea, visam à construção de textos fictícios tecidos em torno do insólito, da monstruosidade,  da cidade,  da violência, da seca, das chuvas, do sofrimento, da memória, dos mitos, da tradição, das festas, da religiosidade, da desagregação da estrutura familiar, da força do tráfico e do submundo do crime, da organização do sistema carcerário, da falta de perspectiva dos jovens, entre outros objetivos.
Além disso, os escritores marginais, ao produzirem seus textos, intentam ressaltar os aspectos positivos das bordas da sociedade, como a solidariedade; o espírito de coletividade e a união tão caros às comunidades carentes; o singular modo de falar, pleno de gírias características; e, sobretudo, as manifestações culturais que emergem desses lugares. Não são cânones, mas podem ser desvinculados do clichê periférico. Para isso pretende-se rastrear as representações imaginárias sobre os mitos e ritualizações da palavra barranqueira, com a intenção de trazer ao público as produções literárias  “das bordas”norte-mineiras, enquanto escritores marginais, e destacar as formas de enfrentamento aos estereótipos negativos sobre aquela literatura como subliteratas. E, ainda, analisar as representações folclorísticas do imaginário, das festas, das mídias, dos mitos, dos rituais da palavra escrita e das identidades do sertanejo que vive à margem direita do Rio São Francisco. Buscar, coletar e catalogar  a produção poética (em prosa e verso) de Pirapora a Januária, em Minas Gerais,  em suas linhagens e  releituras a partir dos anos 50  à pós- modernidade.

Material e Métodos

A metodologia deste estudo prendeu-se  aos métodos qualitativos e descritivos, aliados à técnica documental.  As atividades desenvolvidas na pesquisa foram centradas na busca e na  leitura crítica de todos os livros impressos encontrados nas barrancas do rio, no norte de Minas Gerais, a saber: Recolha  das obras literárias; Conhecimento da bibliografia geral da área de concentração (teoria, crítica e ficção); Conhecimento da bibliografia específica do recorte de pesquisa escolhido no interior da área. Realizou-se estudos e pesquisas voltadas à teoria literária,  realizadas nas reuniões do Grupo. Análises quantitativas dos dados: levantamentos preliminares e subsidiários às análises qualitativas, através do levantamento comparativo e percentual das ocorrências em cada livro. Análise qualitativa do material estudado. Além das necessárias referências históricas, a análise dos textos ensaísticos requer um estudo dos discursos a partir da retórica argumentativa. Apresentações em seminários e congressos, além da participação em eventos similares regionais, locais ou nacionais.

Resultados e Discussão
           
O presente trabalho realizou um estudo da literatura produzida no Norte de Minas Gerais, especialmente das cidades ribeirinhas das margens direita: Pirapora e São Francisco e da margem esquerda: São Romão  e Januária a  fim de enriquecer o estudo das literaturas das gerais para criação e fortalecimento do Mestrado em Literatura Brasileira, recém-implantado na Universidade Estadual de Montes Claros/Unimontes.  Para isso rastreamos as representações imaginárias sobre os mitos e ritualizações da palavra barranqueira, com a intenção de trazer ao público as produções literárias  “das bordas”norte-mineiras, enquanto escritores marginais, e destacamos as formas de enfrentamento aos estereótipos negativos sobre aquela literatura como subliteratas. Realizamos análise das representações folclorísticas do imaginário, das festas, das mídias, dos mitos, dos rituais da palavra escrita e das identidades do sertanejo que vive à margem direita do Rio São Francisco. Desenvolvemos um estudo dos diálogos dessa literatura norte-mineira com outras literaturas, com formatos híbridos, do local ao global, conforme propõe Homi Bhabha (1998). Verificamos que os temas apresentados mesclam-se aos temas da literatura brasileira contemporânea em todo o Brasil.
Segundo Robert Darnton (1987), a marginalidade de uma obra é dada, essencialmente, pela posição do não-reconhecimento procedente do sistema literário instituído. A subversão aos valores dominantes, por estar à margem, se realiza de maneira explícita e descompromissadamente, tendo a denúncia lugar de destaque. Na visão desse crítico, os escritores marginalizados pelo “Ancien Regime” são classificados como subliteratos. A fundamental característica dessa produção literária anterior à Revolução Francesa, com efeito, era expor claramente o ódio ao sistema falacioso da “república das letras”, via denúncias relativas aos privilégios dos escritores que eram prestigiados pelo rei. Dessa forma, o monopólio da “boa literatura” precisava ser atacado.
A obra de autores norte-mineiros, tais como Afonso Schimidt, com o livro “Pirapora”. De Januária José Antônio de Souza com o livro “Paixões Alegres” e Jove da Mata com “ Quem fui!!! Quem sou”. De São Francisco, Geraldo Ribas com “O laço encarnado”, João Naves de Melo com o livro “O homem e suas tempestades”. De São Romão Maria da Glória Caxito Mameluque com “Crônicas do cotidiano” e outros que forem catalogados posteriormente, por situarem-se à margem do sistema literário brasileiro, adota a denúncia do sofrimento e da alegria do povo do rio São Francisco, em que habitam tipos humanos diversos, como um de seus objetivos fundamentais de análise.
Na esfera literária brasileira, percebemos que os representantes da literatura periférica, têm produzido textos como instrumento de luta contra a massificação que domina e aliena os segmentos excluídos da sociedade. Tais escritores, então, têm produzido uma literatura de resistência, como forma de garantir que a população do gueto/favela/periferia/barrancas seja incluída no cenário sociocultural do país, assegurando, portanto, a representatividade da arte e da cultura autênticas desse segmento social composto pela maioria, mas que, infelizmente, representa uma minoria.
Apreendemos que o caráter de marginalidade de alguns textos literários também está diretamente relacionado ao esquecimento da crítica. Robert Darnton (1987), ao estudar a boêmia literária no período que antecedeu a Revolução Francesa, esclarece que os textos marginais dos chamados subliteratos, e que faziam denúncias e promoviam o fim do regime instituído pela aristocracia.  De acordo com Darnton, os marginais das letras, como eram conhecidos, carregados de um ódio visceral pelas instituições, tiveram uma participação fundamental na revolução que acabou com o modelo do “Ancien Regime”. É fato que a partir da década de 90 do século XX a literatura marginal sofreu uma contundente mudança. Nessa época, os escritores eram representantes da classe média e alta que tratavam de questões cotidianas de modo irônico.
Hoje, o projeto literário dos escritores das barrancas do São Francisco e os demais escritores da margem direita do rio é fazer com que a voz dos grupos excluídos da sociedade retumbe no entre-lugar, no dizer de Homi K. Bhabha (1998), quando interpreta a cultura como estratégia de sobrevivência. O foco de sua análise são os discursos marcados pela questão da diáspora, do exílio, dos deslocamentos de todos os tipos: linguísticos, históricos, geográficos. A troca de experiências entre povos de culturas diversas passam a dividir um mesmo espaço (coexistência mais ou menos forçada), desencadeando um movimento ininterrupto de construção de significações. Os híbridos daí surgidos não seriam uma mescla, um produto da soma de duas matrizes culturais, apto a traduzi-las e reinterpretá-las, um produto final sintético. Seriam, em contrapartida, signos em constante estado de ajuste, situados num espaço que Bhabha denomina de entre-lugar.
Vale dizer que o híbrido, para Bhabha, não é algo concreto, dado, mas algo ativo, um processo. O hibridismo simultaneamente afirma e nega a semelhança com aquilo que o gerou e se afirma num outro caminho, numa linha fronteiriça, num local de perda de sentidos pré-estabelecidos, numa corda bamba, no fio de navalha que é o entre-lugar. Esta tensão criativa seria responsável pela recuperação do aspecto histórico e político da cultura: “Minha passagem do cultural como objeto epistemológico à cultura como lugar enunciativo, promulgador, abre a possibilidade de outros ‘tempos’ de significação cultural (...) e outros espaços narrativos (...).” (Bhabha, 1998, p. 248). Espaços intervalares nos quais identidades diferenciais estarão sempre em negociação, rearticulando-se, redefinindo suas fronteiras. Segundo Bhabha, tais espaços devem ser percebidos com um futuro, sem que isto signifique uma origem num passado específico, que cruza um presente transitório para alcançar um fim previamente determinado. O futuro, ao qual Bhabha se refere, que só existe enquanto questão aberta, situado num entre-tempo.
Verificamos que os porta-vozes dessa nova vertente da literatura periférica visam à denúncia da violência – sobretudo a policial – da desagregação da estrutura familiar, da força do tráfico e do submundo do crime, da organização do sistema carcerário, da falta de perspectiva dos jovens, entre outros objetivos. Além disso, os escritores marginais, ao produzirem seus textos, intentam ressaltar os aspectos positivos das bordas da sociedade, como a solidariedade; o espírito de coletividade e a união tão caros às comunidades carentes; o singular modo de falar, pleno de gírias características; e, sobretudo, as manifestações culturais que emergem desses lugares. Não são cânones, mas podem ser desvinculados do clichê periférico.
A exceção à preponderância do cânone surge no artigo “Heterônimos e cultura das bordas: Rubens Lucchetti”, em que Jerusa Pires Ferreira (USP, 2000) pretende desvincular a obra deste autor de livros policiais e de terror da idéia de literatura marginal, associando-a à “cultura das bordas”. Contudo, a autora situa a obra de Lucchetti “numa faixa de transição” e afirma que “estudar um autor como ele conduz a que se procure entender o cânone desta literatura” voltada para os públicos populares. Quando Jerusa situa a obra do escritor nas bordas, e não no centro, e se refere ao “cânone desta literatura”, ela acaba por inserir a obra de Lucchetti, em relação à literatura tradicional, num lugar de exclusão. O artigo de Jerusa é exceção por abordar o trabalho de um autor voltado para uma faixa mais popular de público.

Falo de cultura das bordas e não das margens, para não trazer a noção pejorativa ou mesmo reversora de marginal ou de alternativa. Com “bordas” quero enfatizar a exclusão do centro, aquilo que fica numa faixa de transição entre uns e outros, entre as culturas tradicionais reconhecidas como folclore e a daqueles que detêm maior atualização e prestígio, uma produção que se dirige, por exemplo, a públicos populares de vários tipos, inclusive àqueles das periferias urbanas (FERREIRA, 2000, p. 54).

Com relação aos gêneros literários, as formas narrativas ditas confessionais (autobiografia, diário, memórias), escritas em primeira pessoa, por muito tempo, foram consideradas menores e, desse modo, seguiram seu curso, conforme Leila Perrone-Moisés (1998), distanciadas das “altas literaturas”, portanto periféricas e marginais. Graças a uma visão simplista, que considera tais narrativas como formas de “não ficção”, por apresentarem vestígios factuais, houve uma segmentação entre Literatura de fato e as obras confessionais.
É verdade que muitos teóricos têm questionado sobre a possibilidade de haver realmente um traço formal que distinga a narração de acontecimentos verificáveis da narração produzida pela imaginação. Há um consenso, todavia, tanto no que se refere aos gêneros confessionais quanto às outras formas literárias: ambas se constituem em maneiras expressivas de narrar a experiência humana. Antes de tudo, a literatura confessional é Literatura. Essa separação, portanto, deveria ser fruto apenas de implicações teóricas relacionadas ao uso da primeira pessoa dentro da narrativa.
É possível identificar, na dinâmica dos valores vividos em contextos de pobreza, certas motivações que levem à atividade social da leitura e da escrita. Trata-se de descobrir o leitor escritor potencial. No dizer de Alfredo Bosi “O que me move é pensar o excluído como agente virtual da escrita, quer literária, quer não literária. Como o excluído entra no circuito de uma cultura cuja forma privilegiada é a letra de fôrma?” (BOSI, 2002, p. 261).
O estudo prendeu-se, portanto,  à investigação do imaginário escrito nas/das águas, concernente aos causos narrados oralmente, e que foram registrados  por escritores desconhecidos, anônimos,  das cidades de Minas Gerais, principalmente de Pirapora, São Romão, São Francisco e Januária. São  narrativas e poesias que são elaboradas da experimentação, no cotidiano dessas pessoas, na intimidade com as águas do rio São Francisco, em sua labuta diária pela subsistência, nos prazeres e nos perigos enfrentados na pesca ou no lazer. Tratadas como literatura oral (SÈBILLOT, 1995; CASCUDO, 1984), como formas simples (JOLLES, 1975) ou ainda como literaturas da voz (ZUMTHOR, 2000), por definir os elementos fundamentais da vocalidade e da performance, estas narrativas se manifestam através de um corpus bastante amplo e variado: contos, mitos, lendas, causos, cantigas, rezas, adivinhas, ditados, dentre outras formas de expressões orais. Ricas em significados, tais narrativas revelam informações históricas, etnográficas, sociológicas e denunciam preceitos, costumes, idéias, mentalidades, julgamentos.
Inserida no campo da Literatura Comparada e da Crítica Cultural, a pesquisa parte de uma visão etnoliterária, fundamentando o tratamento dos relatos nas concepções sobre o testemunho e em ISER (1996), na perspectiva antropológica, para o entendimento da articulação entre o fictício e o imaginário; em ZUMTHOR (2001), para o entendimento das questões inerentes à performance, centrada no jogo de expressão e percepção entre o contador e o (s) receptor (es) no ato imediato da comunicação;  para o entendimento de cultura como recurso para o turismo cultural, isto é, para a promoção as indústrias de entretenimento  que exploram o patrimônio cultural como uma alternativa sustentável de desenvolvimento.
O intuito deste trabalho, enfim, é o de apresentar à Academia 50 nomes de escritores mineiros, cujas produções em prosa e verso encontram-se adormecidas, baças, achadas “menores”, consideradas à margem  do cânone. Por isto,  provocamos  o assunto. A discussão acerca do cânone é antiga e, permanentemente, surgem indagações do tipo: “Estar dentro do cânone, depois de morto ou estar no cânone, em vida?” Eis a questão. Não quero, aqui,  montar uma conspiração contra a literatura clássica, pelo contrário, acho-a importante, grandiosa, necessária. Todos devemos estudá-la, mas não somente ela.
O debate sobre o cânone continua, ainda, teimosamente, ligado a vários aspectos, principalmente à dominante da época, como por exemplo: dominantes ideológicas, estilo de época, gênero dominante, geografia, sexo, raça e classe social, os mais fortes e os mais fracos, como escreveu e mostrou ao mundo Harold Bloom (2005), numa espécie de cardápio, como se dissesse o que pode e o que deve ser lido como literatura. Continua, portanto, uma espécie de etiqueta. Bloom preocupou-se em distinguir os poetas “fortes” dos “fracos”. Destacou-se sempre por escrever sem cerimônias, visando a separar o joio do trigo, analisando, criticando ou recomendando bons e maus textos.
Por esta razão, o trabalho de Bloom prescrevendo um cânone consagrado no Ocidente causa rebuliços no mundo acadêmico e mesmo fora dele. Enquanto conjunto orgânico ou articulado de livros eleitos por seu valor estético, a demarcação de um cânone ocidental é acusada de ser autoritária por feministas, marxistas, pós-colonialistas e outras correntes de pensamento pós-modernas. Bloom tenta se defender, alegando que não é o responsável pelas próprias escolhas: haveria um processo de canonização, incluindo e substituindo os títulos na medida em que os escritores fazem escola ou são esquecidos e abandonados pelos leitores. Isto é o que ele diz.
Sabe-se que aquilo que é canonizado em certas épocas, é esquecido noutras; o que foi esquecido  pode ser resgatado em outra. Bom exemplo disso é o que aconteceu com Alexandre Dumas, em Portugal, com Qorpo Santo e Sousândrade, no Brasil, e com o grande nome Charles Baudelaire, na França.
Sempre ao arrepio das vanguardas literárias e dos cânones nobilitadores das belas letras, primícia literária para todos os grandes e pequenos leitores, foi escarnecida e refugada pelas academias, onde se criva o que  passa e o que fica.
Até que, como num instante de encanto, Alexandre Dumas – um dos tais autores que todos leram, mas de cuja prole poucos se reivindicam – ascendeu ao Panteão dos Imortais e  transformou-se em clássico, repousando os seus restos mortais na companhia de Voltaire, de Rousseau, de Vitor Hugo, de Émile Zola e de Fénelon.
Os estudos culturais têm postulado uma crítica da representatividade do cânone, enquanto fator de exclusão, ou seja, de Homero a Joyce, o cânone privilegia um padrão eurocêntrico composto por uma maioria de escritores mortos, brancos e homens. Esse padrão, ao ser endossado e perpetuado, discrimina e alija a produção literária que opera fora dessas premissas.
As universidades, instituições de conservação e resistência, que haviam recusado este tipo de literatura, resolveram encarar de frente o incômodo intruso, num misto de dúvida benevolente e de fastio. Mas, logo logo retomam os pré-conceitos. Elas continuam aplicando o mesmo modelo que aprenderam;  aplicando a relação de poder, aplicando o poder dos grupos e, sobretudo, o poder do eixo Rio/São Paulo, aplicando a mesmice, pois só é canonizado o escritor que, vivendo nessas regiões, pode frequentar determinados círculos de influência, professores dos cursos de pós-graduação, críticos literários, redatores de jornais, por exemplo, resenhistas como os dos grandes jornais Folha de São Paulo ou Jornal do Brasil. Como exemplo: a Folha de São Paulo  prefere analisar estrangeiros, traduzidos pela Companhia das Letras. Apenas os escritores mais conhecidos obtêm guarida em suas páginas. É raríssimo aparecer um escritor brasileiro desconhecido. De vez em quando, a Folha abre uma exceção, porém nunca para escritores da província.
Isso tudo faz parte do cânone, das histórias do cânone. Sempre será assim, mas não  podemos calar todas as vezes. Provocar é preciso!
A Universidade brasileira continua mestra em perpetuar a mesmice. Estuda e analisa os mesmos escritores, os mesmos nomes de sempre, em todos os programas de pós-graduação. Quando estuda a contemporaneidade, é raro que chegue aos nossos dias, preferindo permanecer nos canonizados Guimarães Rosa e Clarice Lispector, que, é claro, devem ser estudados, mas, não só dos dois vive uma literatura!. De vez em quando, alguns nomes novos são elevados à "dignidade" dos currículos, são contemplados até nas provas dos vestibulares, e são canonizados. E, prova máxima da canonização, são estudados e apresentados nos encontros da ANPOLL ou da ABRALIC. Muitos sucumbem, e nunca mais re-aparecem. Outros caem no gosto do leitor e estão canonizados, mas, se escutam a voz da etiqueta, menosprezam-nos dizendo  não ser literatura.
Uma curiosidade dos escritores à margem. Observa-se que, em geral, são excluídos dos cânones: o popular, o humor, o satírico, a prostituta e o erótico. O baixo é excluído. Permanece o alto. É a etiqueta da literatura. Por  que não se arriscar por mares nunca dantes navegados?
É claro e notório que o cânone literário não é uma seleção de obras feita por uma elite, que se reúne para decidir quais serão canonizadas ou não. Há todo um processo de seleção, formação e preservação de uma obra literária. Obviamente, há uma valorização da obra, quando se considera que ela contém qualidades que a distinguem e a tornam melhor do que outras.
Por toda esta discussão é que precisamos trazer nomes outros, escritores outros  do verso e da prosa para a Academia.
É aqui o lugar  que nos estimula a repensar o poeta para aquém  ou para  além do engajamento, ultrapassando os limites da paisagem urbana, local, regional, universal. É aqui o lugar para estimular o esquecimento e a memória, o real e o imaginário, o artístico e o cultural; o sagrado e o profano; as amizades homoerotizadas ou homossexualizadas; a nação e a periferia; o belo e o feio; as figurativizações do passado-no-presente.
Muitos certamente passarão a  ser sinônimos na literatura brasileira contemporânea, como sinônimo é Adão Ventura Ferreira Reis, nascido em 1946, em Santo Antônio do Itambé, Distrito de Serro/MG. Advogado, formado pela Universidade Federal de Minas Gerais, autor de livros de poesia, sendo os primeiros: Abrir-se um abutre ou mesmo depois de deduzir dele o azul (Edições Oficina, 1970), As musculaturas do Arco do Triunfo (Editora Comunicação, 1976). Escreveu cinco livros de poesia. O mais conhecido, A cor da pele, de 1980,  tem como tema as experiências do homem negro brasileiro. Participou de antologias poéticas em vários países. Teve um de seus poemas incluído na antologia Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século, organizada por Italo Moriconi.  Adão Ventura fundou, juntamente com Afonso Ávila e outros escritores o Suplemento Literário de Minas Gerais. Além de escritor, foi roteirista e participante do filme Chapada do Norte (1979). Na década de 90, atuou como Juiz Classista, e foi presidente da Fundação Cultural Palmares. Faleceu no ano de 2004.
É aqui, portanto, que devemos valorizar a obra de escritores mineiros, momento oportuno em que se discute o cânone e ousa mostrar o que chamam, teimosamente, de a literatura da exclusão, a literatura periférica, a literatura confessional, a literatura enjaulada, a paraliteratura, também dita marginal ou literatura das bordas.
Flávio Koethe (2004) ressalta que o cânone não é bonzinho e nem reconhece o mérito pelo mérito. Diz que ele seleciona o que serve a seus propósitos políticos, sob a aparência de eles serem apenas artísticos. [...] . Menciona, também, que um autor ser canônico não significa que toda a sua obra esteja enquadrada no cânone. Pelo contrário, a seleção é sempre mínima. Resta a alguns críticos, a partir disso, a esperança de reformar o cânone, mantendo os mesmos autores e modificando apenas alguns títulos seus (KOTHE, 2004, p. 43, 44).
Este texto faz parte do corpus da pesquisa Escritores Mineiros das Bordas Literárias, em andamento, realizada na Universidade Estadual de Montes Claros, razão por  que passaremos a  mencionar, numa espécie de desfile, os nomes que farão parte  do Guia Literário de Autores Mineiros, que serão publicados em um site, e, posteriormente em livro, apresentando vida e obra, de 50  autores desconhecidos, mas que pretendemos estudar, nos moldes, como fizeram com Baudelaire.
Poesia: Adão Ventura, Edimilson de Almeida Pereira, Aroldo Pereira, Jove da Mata, Osmar Oliva, Waldir de Pinho, João Naves de Melo, Geraldo Ribas, Josué Alves Martins, Dário Cotrim, Rodrigo Guimarães, Fábio Alves Ferreira, Nair de Deus Prado Faria, Aníbal Oliveira Freire, Marijô, Jandira Braga do Rosário, Lena Guimarães, Gildete dos Santos Freitas, Janete Ferreira da Silva, Marli Fróes, Gy Reis, Gilmar Pereira, Márcio Adriano Silva Moraes, Jason de Moraes, José Prudêncio Macedo, Edson F. Andrade, Newton Brito de Almeida, Josué Alves Martins, Maurílio Néris de Andrade Arruda, Theresa Campos Pereira, João Damasceno de Almeida, Renato Carneiro Viana, Herbert Frota, Wanderlino Arruda, Mírian Carvalho, Adalgisa Botelho de Mendonça.
Prosa: Manoel Ambrósio Júnior, José Antônio de Souza, Geraldo Ribas, Petrônio Braz, João Naves de Melo, João Botelho Neto, Antônio Ferreira Cabral, Corby Aquino, Humberto Antunes Madureira, João Balaio, Geraldo Tito Silveira, Antônio Henrique de Matos Viana, Maria da Glória Caxito Mameluque, Amelina Chaves, Maria Pires, Wanderlino Arruda, José Wilson Barbosa, Míriam Carvalho, Marluce Barbosa, Carla Silene Campos, Waldemar Uezébio.
Sendo assim, eis os nomes, não como a lista de Bloom, mas que mostramos e pensamos como José Saramago: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara." Repare, portanto, os nossos escritores mineiros desentranhados do cânone, falando de sua aldeia, para depois falarem do universo.
Os resultados da pesquisa serão reunidos em artigos científicos, produzidos pelos alunos voluntários e pelos professores que fizeram parte da Pesquisa em cada cidade citada no corpus. Ainda, produzir e publicar um Blog na forma de documentário, cuja temática versará sobre fotos, a vida e a obra, em resenhas, do labor poético (em prosa e verso), em torno do imaginário das águas das comunidades pesqueiras e ribeirinhas das cidades do norte de Minas, mencionadas no Projeto.

Conclusão

Por fim, chegamos ao segundo ano da pesquisa. Apreendemos que hoje, o projeto literário dos escritores periféricos é fazer com que a voz dos grupos excluídos da sociedade retumbe no entre-lugar, no dizer de Homi K. Bhabha (1998), quando interpreta a cultura como estratégia de sobrevivência. O estudo voltou-se para a investigação do imaginário escrito nas/das águas, concernente aos causos narrados oralmente, e que foram registrados  por escritores desconhecidos, anônimos,  das cidades de Pirapora, São Romão, São Francisco e Januária. Trata-se de narrativas que são elaboradas no cotidiano dessas pessoas, na intimidade com as águas do rio São Francisco, em sua labuta diária pela subsistência, nos prazeres e nos perigos enfrentados na pesca ou no lazer.  Com base no conceito de performance, tomado de empréstimo de Paul Zumthor(1993), depreendemos que as narrativas estudadas se manifestam através de um corpus bastante amplo e variado: romances, contos, crônicas, poesia, mitos, lendas, causos, cantigas, rezas, adivinhas, dentre outras formas de expressões, ricas em significados, tais narrativas revelam informações históricas, etnográficas, sociológicas e denunciam preceitos, costumes, idéias, mentalidades, julgamentos, enfim, é a cidade e a periferia como monstro e suas monstruosidades, sempre.


Referências

BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998.

BLOOM, Harold. O cânone ocidental. Trad. Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.

BOSI, Alfredo. “A escrita e os excluídos”. In: Literatura e resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

CANCLINI. Nestor García. Culturas híbridas – Estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Editora da USP, 2000.

CASCUDO, Camara. A literatura oral no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984.

DARNTON, Robert. “O alto iluminismo e os subliteratos”. In: Boêmia literária e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

FERREIRA, Jerusa Pires. Heterônimos e Culturas das bordas. São Paulo: USP, 2000.

KOETHE, Flávio. O cânone republicano II. Brasília: UnB, 2004.

PERRONE-MOISÉS, Leila. Altas literaturas. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

PEIRCE, Charles S. Semiótica. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000.

ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.





[1] Doutora em Comunicação e Semiótica. Mestre em Letras: Literatura Brasileira. Professora do Programa de Pós-graduação em Letras: Literatura Brasileira e  Professora de Literaturas de expressão portuguesa,  do Departamento de Comunicação e Letras da Universidade Estadual de Montes Claros/MG.


[2] Professor de Literaturas de Expressão Portuguesa no Curso de Letras do Departamento de Comunicação em Letras, da Universidade Estadual de Montes Claros/MG.(Campus Darcy Ribeiro/Montes Claros).


[3] Professor de Literaturas de Expressão Portuguesa no Curso de Letras do Departamento de Comunicação em Letras, da Universidade Estadual de Montes Claros/MG.(Campus de Januária).

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